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Alto uso de mídias sociais pode desencadear o TDAH em adolescentes?

quinta-feira, 26 de julho de 2018 2 comentários
Recentemente foi publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) um importante artigo de Ra e colaboradores que observou uma associação entre uso de mídias digitais e desenvolvimento de sintomas de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) em adolescentes. A pesquisa foi comentada em diversos sites médicos e mídia leiga. O Jornal da Band veiculou matéria sobre o assunto em que dei uma entrevista sobre o estudo.

http://videos.band.uol.com.br/16474186/uso-excessivo-de-eletronicos-aumenta-risco-de-deficit.html


Os pesquisadores conduziram um estudo observacional prospectivo em que adolescentes entre 15 e 16 anos responderam a um questionário de 18 perguntas sobre TDAH no início e aos 6, 12, 18 e 24 meses do estudo. Eles também responderam a um questionário sobre uso de 14 diferentes tipos de atividades com mídias digitais no início e aos 12 e 24 meses do estudo. Foram selecionados os alunos cujos sintomas de TDAH não eram significativos. Ao final, 2587 adolescentes foram analisados.

Observe que foram estudadas as atividades com mídias (conferir redes sociais, troca de mensagens, escutar música, jogar, ler, comprar, vídeochamadas, etc.), não mídias digitais específicas (Facebook, Instagram, Whatsapp). Segundo o estudo, para cada atividade nas mídias digitais em alto uso no início do estudo haveria uma chance significativamente maior de ter sintomas de TDAH nas avaliações de seguimento. Os alunos que não faziam alto uso dessas atividades no início do estudo tiveram uma chance de 4,9% de desenvolver sintomas de TDAH, enquanto que 9,5% dos adolescentes que relataram 7 atividades de alta frequência desenvolveram sintomas de TDAH e 10,5% daqueles que relataram alta intensidade de todas as atividades desenvolveram sintomas de TDAH.

Infelizmente, não foi possível interpretar e explorar adequadamente as contribuições e limitações dessa pesquisa na reportagem acima. Então vamos discuti-las aqui, ainda que não exaustivamente. Primeiramente, como o próprio título do artigo já menciona, foi observada uma associação entre o uso de mídias sociais e o desenvolvimento de TDAH em adolescentes. Sabemos que associação não implica causalidade. Além disso, a associação é bastante modesta, apesar de significativa.

Há questões conceituais que também merecem ser discutidas. Atualmente, o TDAH é concebido como um transtorno do neurodesenvolvimento cujo desenvolvimento dos sintomas se dá precocemente na vida. Ainda que os sintomas possam não estar explícitos muito precocemente (como os sintomas atencionais, os quais dependem bastante de questões contingenciais, como demanda ambiental e suporte oferecido), espera-se que se explicitem no máximo até o início da adolescência. Ou seja, um TDAH que se desenvolve na adolescência ou na vida adulta não está contemplado no conceito atual de TDAH. Não significa que o desenvolvimento tardio de sintomas de TDAH não seja possível, mas estaríamos nos deparando ou com um problema conceitual do TDAH, ou com um quadro novo não descrito nos manuais diagnósticos atuais. E é claro que o estudo traz a importante limitação metodológica de não estar avaliando o TDAH em si, pois foi utilizado apenas um questionário auto-preenchível com os descritores do TDAH.

Um dado curioso da pesquisa é que o pico da incidência de TDAH ocorre aos 6 meses de seguimento. Nos meses seguintes de seguimento, há até uma pequena atenuação dos sintomas. Isso torna difícil atribuir às mídias um papel causal, pois se houvesse esse papel causal seria esperado que os sintomas se acentuassem progressivamente.

Além disso, como os próprios autores reconhecem, o estudo não afasta a possibilidade de causalidade reversa. Pode ser que um percentual dos participantes tivesse sintomas de TDAH que não foram detectados pelo instrumento. Esses participantes com TDAH, em avaliações subsequentes, poderiam vir a apresentar sintomas em níveis detectáveis pelo instrumento. Isso pode ocorrer por uma série de razões, incluindo problemas do próprio instrumento (ex: baixa confiabilidade teste-reteste). Os participantes que eventualmente tivessem sintomas não detectados poderiam vir a preferir essas atividades mais estimulantes. Ou seja, não são as mídias que causam TDAH, mas as pessoas com TDAH que fazem uso mais frequentes da mídia.

De todo modo, o trabalho traz uma hipótese bastante importante que merece ser investigada em estudos futuros. Um dos modelos cognitivos para explicar o TDAH é o de "aversão ao atraso" (delay aversion), que possui sobreposição com outros constructos neuropsicológicos como o de desconto temporal (temporal discount). Esses modelos pressupõem que as pessoas com TDAH possuem uma grande preferência por reforços imediatos, se desinteressando (ou tendo aversão) por reforços do comportamento que sejam postergados, ainda que sejam mais vantajosos a longo prazo. Ou seja, por questões desenvolvimentais as pessoas com TDAH funcionam dessa forma, preferindo reforços imediatos. O que o estudo de Ra et al. sugere é que fornecer reforços imediatos em alta frequência pode fazer com que algumas pessoas desenvolvam a preferência por esse tipo de reforço em detrimento de reforços postergados, ainda que mais vantajosos, adquirindo um funcionamento similar ao de pessoas com TDAH. Já há alguma literatura científica demonstrando que outros fatores podem influenciar a preferência por reforços imediatos, o que torna bastante plausível a hipótese de as mídias digitais levarem a comportamentos que mimetizam o TDAH. É apenas uma questão de tempo até que surjam evidências mais robustas sobre isso, que possam vir inclusive a influenciar o conceito de TDAH e fornecer novos insights sobre seu tratamento psicoterápico.


- Ra CK, Cho J, Stone MD, et al. Association of Digital Media Use With Subsequent Symptoms of Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder Among Adolescents. JAMA. 2018;320(3):255-263. [Link]


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