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Por que as punições físicas são ruins para as crianças?

domingo, 12 de fevereiro de 2012 0 comentários
Em 14 de dezembro de 2011, a chamada "Lei da Palmada" foi aprovada por unanimidade na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Fato é que a proibição dos maus tratos já existia no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A nova lei apenas esclarece o que é considerado maus tratos, bem como as possíveis punições. Entretanto, o objetivo da lei não é criminalizar a palmada, mas ressaltar o malefício dessa prática e colocar sobre o Estado a responsabilidade de orientar os pais que estejam se excedendo nas punições aos filhos. Convenhamos: pais não gostam de bater em seus filhos (a menos que tenham fortes tendências psicopáticas). Quando o fazem, é por acreditarem que não há mais recursos disciplinares ou por acharem que há algo de educativo na prática. Tanto é que após a aprovação da lei, muitos pais se manifestaram alegando que as palmadas são essenciais para a educação dos filhos. Mas, comumente, após dar suas palmadas e chineladas, os pais sentem remorsos (são os "efeitos colaterais" da punição).


Vamos então discutir os principais equívocos dos pais a respeito das punições físicas. Esses equívocos se resumem às crenças de que as palmadas são pedagógicas, são inofensivas e que sem elas estaremos criando "marginais" (ou seja, que não há alternativas às palmadas). Antes de começarmos desconstruir essas crenças, é necessário explicar que as histórias pessoais não servem como evidências de nada. Ou seja, os argumentos de que "meu pai me deu palmada e hoje sou uma pessoa honrada" não valem. Talvez, se seu pai não tivesse te batido, você fosse uma pessoa melhor. Além disso, muitos psicopatas receberam palmadas até demais quando pequenos. Os nossos argumentos a favor ou contra as palmadas devem ter base científica. O que valem são os estudos epidemiológicos com centenas ou milhares de crianças que sofreram punições físicas comparadas àquelas que não sofreram. Aí avaliamos seu desenvolvimento e comportamento, e vemos se as punições tiveram efeito benéfico ou maléfico. Concordamos nesse ponto? Se de sua parte não houver uma abertura para o que a ciência (através do empirismo e do raciocínio lógico) nos mostra, então pode interromper a leitura aqui mesmo. Vocês e seus filhos estão em maus lençois... Mas se entramos em acordo que os estudos científicos estão aí para nos ajudar e se vocês têm abertura para outras formas de cuidado que não apenas através do uso da violência, então somos parceiros.


Primeiramente, é importante ressaltar que quando estivermos falando sobre “punições físicas”, elas incluem as palmadas e chineladas. Vamos concordar em um ponto: não há um consenso sobre os limites entre uma “palmada de amor” e o espancamento. Você pode achar que a “palmada pedagógica” não precisa doer, outra pessoa acha que tem que doer um pouco, outra acha que tem que doer bastante, outra acha que tem que ficar a marca (para se lembrar do que fez), e aí a coisa já começa a ficar séria. Essa questão foi abordada de modo brilhante por Ellen Whipple e Cheryl Richey (1997), que mostraram que a “exposição relativa” a palmadas é um marcador adicional de risco para abuso. Ou seja, frequentemente os pais cruzam a linha que supostamente divide a “disciplina física” do abuso físico. As consequências físicas das agressões físicas incluem: hematomas e equimoses; lacerações; queimaduras; fraturas; danos oculares; lesões torácicas e abdominais; traumatismos encefálicos; lesões nervosas, etc. As consequências psíquicas e sobre o desenvolvimento são diversas.


Gráfico: Crianças que receberam palmadas
tiveram menor QI quatro anos depois. Quanto
mais sofreram agressão, pior o desenvolvimento.
Para este texto não ficar muito extenso, vamos nos ater apenas a alguns estudos sobre punições físicas com crianças. Recentemente, Murray Straus (2009), da Universidade de New Hampshire, apresentou dados de dois estudos que coordenou, cujos resultados ainda não foram publicados. O primeiro trabalho é particularmente importante por ser um dos poucos estudos longitudinais sobre a questão. Neste trabalho, Murray Straus e Mallie Paschall estudaram 806 crianças entre 2 e 4 anos e 704 crianças entre 5 e 9 anos. As crianças foram reexaminadas 4 anos mais tarde. Ao final do estudo, o QI das crianças que não eram agredidas era significativamente mais alto do QI das crianças que recebiam palmadas e quanto mais os pais batiam, pior era o efeito (Gráfico). O segundo estudo também é de extrema relevância em virtude de seu caráter transcultural. Os pesquisadores observaram que as crianças que recebiam palmadas possuíam um pior desenvolvimento cognitivo em relação àquelas que não levavam palmadas. O estudo foi realizado em 32 países e o impacto da prática de punição física é tão dramático a ponto de rebaixar o QI médio da população de um país onde a prática da palmada é mais disseminada! O estudo sugere ainda que o aumento recente do QI de alguns países pode ser em decorrência da queda dessas práticas violentas. Murray Straus já possui uma longa trajetória no estudo do impacto das punições físicas. Em 1997, por exemplo, já havia demonstrado que a punição corporal dos pais para reduzir os comportamentos antissociais dos filhos tinha efeito contrário.


Na mesma linha, Janet C. Rice e colaboradores (2010) mostraram que as crianças que recebiam palmadas quando tinham 3 anos, tornavam-se crianças mais agressivas aos 5 anos. E vejam bem: bastava que os pais agredissem numa frequência de 2 vezes por mês para aumentar o risco de agressividade aos 5 anos em mais de 50%!


Como trabalho mais recente, Joan Durrant e colaboradores levantaram a literatura dos últimos 20 anos para demonstrar que punir fisicamente as crianças pode afetar significativamente o seu desenvolvimento em longo prazo e aumentar o risco de comportamento agressivo, antissocial, desobediência, transtorno mental (depressão, ansiedade) e abuso de substâncias. Além de deixar as crianças mais susceptíveis a transtornos mentais, esses quadros surgem de modo mais grave e refratário ao tratamento (Nanni et al., 2011). A questão que surge inicialmente é se as crianças mais agitadas e agressivas não são aquelas que justamente eliciam punições físicas com mais frequência. Além de alguns estudos já terem controlado essas variáveis, podemos raciocinar que se esse fosse o caso e as práticas de punição física fossem eficazes, nós teríamos um decréscimo do comportamento agressivo. Entretanto, não há um único estudo que mostrou alguma eficácia das palmadas.


Por fim, para os pais que agora já se convenceram que as palmadas não são legais, mas não sabem o que fazer no lugar de agredir seus filhos, saibam que há algumas alternativas. Muitas pessoas contrárias à palmada orientam apenas que o diálogo deve ser usado. Concordo plenamente com isso, mas reconheço que muitas vezes o diálogo não é suficiente. Porém, ao invés de usar as punições agressivas, os pais podem punir os filhos com a suspensão de algo que eles gostem. A punição deve vir o mais rapidamente possível. Quanto mais rápida a justiça, maior sua eficácia. Deve haver uma proporção adequada entre o comportamento realizado e a punição (ou a recompensa, no caso de bons comportamentos). Além disso, as punições devem ser curtas, mas consistentes. Ou seja, não há necessidade de deixar uma criança que falou um palavrão sem jogar videogame por um mês (ao final do mês, ela não lembra mais a razão da punição) e suspender a punição no meio. Se houver discordância entre o cônjuge, deve ser discutido à parte e chegar a um consenso, mas um não deve desautorizar o outro. Em resumo: punições rápidas, curtas e consistentes. Apesar da necessidade de executá-la com rapidez, evite fazê-la de cabeça quente. Primeiramente porque não se deve gritar com seu filho. Isso o induzirá a agir da mesma forma com você. Além disso, tendemos a exagerar quando estamos nervosos. Outro ponto importante: a punição deve ser referente apenas a coisas que não são essenciais ao desenvolvimento da criança. Não se pode punir uma criança ou adolescente deixando-o sem almoçar ou lanchar. Isso é abuso.


Entretanto, as punições (mesmo a suspensão de coisas agradáveis), só devem ser utilizadas em último caso. Quando punimos uma criança ou adolescente, estamos dizendo a eles para onde não queremos que ele vá. Porém, ele não saberá para onde deve ir. Desse modo, a prática mais aconselhável para lidar com comportamentos inadequados é tentar colocá-los em extinção (ou seja, tentar identificar os potenciais reforçadores desses comportamentos e interrompê-los) e estimular os comportamentos bons, estabelecendo reforços mesmo que arbitrários. Para algumas crianças e adolescentes, após um longo histórico de problemas de comportamento e cuidados parentais equivocados, os pais podem ter grandes dificuldades em implementar as mudanças. Nesses casos, uma ajuda profissional é necessária. O tratamento comportamental é o mais eficaz nessas situações e, basicamente, dirige-se aos pais. Há muitos profissionais habilitados para realizar treinamento de pais e algumas universidades, como o Serviço de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG, realizam esse trabalho (vinculado a projetos de pesquisa).


Esperamos que o texto tenha ao menos trazido uma reflexão sobre essa “cultura de violência” de nossa sociedade a qual submetemos nossas crianças desde cedo. Sim, há aspectos culturais e históricos nessas práticas que são inegáveis. Alguns pais, geralmente os mais agressivos, costumam queixar-se da “Lei da Palmada” dizendo que fazem com seus filhos o que bem entenderem. Nesse ponto, aproveito para lembrar às mães que, há até bem pouco tempo, os maridos costumavam agredir suas esposas e se queixavam das leis que dão proteção às mulheres de forma similar: “a mulher é minha, faço com ela o que quiser”. Ainda bem que esses tempos se foram para uma parte significativa das mulheres. Muitas ainda sofrem com maridos agressivos. Espero que os filhos não sofram por muito tempo com pais e mães agressivos.


Referências:

Durrant J, Ensom R. Physical punishment of children: lessons from 20 years of research. CMAJ. 2012 Feb 6.


Nanni V, Uher R, Danese A. Childhood Maltreatment Predicts Unfavorable Course of Illness and Treatment Outcome in Depression: A Meta-Analysis. Am J Psychiatry. 2011 Aug 14. [Epub ahead of print]


Straus MA, Sugarman DB, Giles-Sims J.  Spanking by parents and subsequent antisocial behavior of children. Arch Pediatr Adolesc Med. 1997 Aug;151(8):761-7.


Straus MA. 14th International Conference on Violence, Abuse and Trauma: Presentation KF3. Presented September 25, 2009.


Taylor CA, Manganello JA, Lee SJ, Rice JC. Mothers' spanking of 3-year-old children and subsequent risk of children's aggressive behavior. Pediatrics. 2010 May;125(5):e1057-65.


Whipple EE, Richey CA. Crossing the line from physical discipline to child abuse: how much is too much? Child Abuse Negl. 1997 May;21(5):431-44.


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