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Superprescrição de medicamentos: as muitas faces da verdade

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012 0 comentários
Fig. 1: Crescimento da prescrição de
metilfenidato durante a década de 90.
Temos visto a mídia leiga publicar frequentemente matérias sobre o aumento vertiginoso de medicamentos psiquiátricos para crianças, em particular os antidepressivos e os estimulantes. O fato não é nada novo. Em 1998 a revista Veja publicou uma fatídica reportagem intitulada "Babá Química" em que já apontava um grande crescimento na prescrição de metilfenidato (Fig.1), até recentemente o único estimulante no Brasil para tratamento de TDAH. Sobre a Figura 1, vale a observação da distorção do gráfico elaborada pela revista Veja para que o crescimento do medicamento pareça maior do que realmente é. Além disso, imaginar que no ano de 1998 apenas 65 mil caixas foram vendidas é impressionante. Significa que menos de 2 mil crianças (possivelmente com TDAH, considerando uma dose média de 20mg/dia em uso contínuo) estavam em tratamento àquela época. Quantas crianças com TDAH não ficaram prejudicadas por não terem tido a oportunidade de receberem tratamento adequado? Portanto, deveríamos até ver com bons olhos o aumento na prescrição do medicamento, pois possivelmente significaria que mais pessoas estariam tendo acesso ao melhor tratamento medicamentoso para TDAH.

Informações precisas sobre as vendas de medicamentos psiquiátricos não são fáceis de serem achadas, visto a fragilidade de nossa Anvisa e o pouco interesse dos laboratórios de divulgarem esse tipo de informação. Entretanto, é inegável o aumento na prescrição desses medicamentos, como expresso pela recente falta do medicamento em algumas farmácias. Dados mais recentes apontam desde um aumento em torno de 80% na prescrição do medicamento entre 2004 e 2008 (dado divulgado pela revista Veja em 2010, que não cita sua fonte) até um aumento de 1.616% entre 2000 e 2008 (dado divulgado pelo "Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos", seja lá o que isso signifique).

Fig. 2: Consumo de metilfenidato nos EUA
(azul) e em outros países (cinza).
Fig. 3: Prescrição de metilfenidato (cinza)
e anfetaminas (preto) nos EUA.
Curiosamente, a própria revista Veja publicou há cerca de 2 anos uma matéria chamando atenção para o subdiagnóstico de TDAH. Considerando que em 2008 foram vendidas 1.147.000 caixas do metilfenidato, o número de medicamentos vendidos atualmente responderia pelo tratamento de pouco mais de 30 mil pessoas com TDAH. Comparando com os pouco mais de 2 mil pacientes de 14 anos atrás, seria um aumento expressivo, mas longe ainda de cobrir toda a população brasileira que potencialmente teria sintomas de TDAH. Além disso, deveríamos ainda considerar o crescimento significativo do uso do medicamento por "concurseiros", "baladeiros" e pessoas querendo emagrecer. (É interessante observar como tanta gente sai brigando contra a prescrição de medicamentos para crianças e adolescentes "indefesos" que têm TDAH, mas que nada falam contra os adultos que fazem mau uso do remédio. Ou seja, consideram "um crime" dar tratamento para quem dele precisa, mas são omissos com quem usa o medicamento sem indicação médica). Informações não oficiais e não científicas apontam que esse aumento teria tornado o Brasil o segundo maior prescritor de metilfenidato do mundo, o que seria também impressionante, visto que o medicamento de 1o. linha para tratar TDAH não está disponível no SUS. (Para azar das famílias menos favorecidas economicamente, não basta estudar em piores escolas, como também não há acesso ao melhor tratamento). Porém, ao se considerar que o metilfenidato era o único estimulante para TDAH disponível no Brasil até recentemente, a informação não é tão surpreendente. Segundo a ONU, os EUA são responsáveis pela produção e consumo de 85% do metilfenidato produzido no mundo (Fig. 2). Lá, um percentual significativo e crescente das pessoas com TDAH fazem uso de outros estimulantes (Fig. 3). Ampliar o acesso ao medicamento no Brasil é tarefa difícil. Além do medicamento não estar disponível no SUS, os próprios médicos do SUS têm dificuldade em obter as "receitas amarelas". No Ambulatório de Déficit de Atenção (AMBDA) do HC-UFMG, por exemplo, é corriqueiro recebermos encaminhamento de médicos dos postos de saúde solicitando acompanhamento de um paciente com TDAH pelo simples fato de o médico assistente não conseguir a receita amarela em seu posto. O prof. Carlini e colaboradores já haviam observado o impacto negativo das receitas amarelas. Segundo os autores, "além dos vários entraves burocráticos para se adquirir o medicamento, há também o medo por parte dos familiares e do próprio paciente de estar tomando tal medicação" (o chamado "tarja preta"). E vão além:

"Neurologistas e psiquiatras argumentam que o controle do metilfenidato deve existir, mas, em se tratando de um medicamento prescrito por especialistas e de não possuir grande potencial de dependência, o receituário azul já seria suficiente para ocontrole adequado".

Os autores explicam que:

"O metilfenidato é uma substância que está classificada na Convenção da ONU sobre Drogas Psicotrópicas – 1971 (revisada em 27 de novembro de 1999) – entre as substâncias da lista II. Deve-se salientar que não consta entre essas substâncias nenhuma que pertença ao grupo de opiáceos/opióides. Por outro lado, de acordo com a Portaria SVS/MS no 344, de 12/5/98, e RDC no 22, de 15/2/2001, o metilfenidato foi colocado na lista A3 (substâncias psicotrópicas), mas sujeito à notificação de receita A. Nessa lista estão contidas substâncias como metanfetamina (“ice”), fenciclidina (“pó de anjo”) e dronabinol (princípio alucinógeno da maconha). No Brasil, entretanto, também as drogas opiáceas/opióides (ou narcóticas) (...) devem ser prescritas com a mesma notificação de receita A. Ou seja, tanto o metilfenidato como os potentes analgésicos e os fortes indutores de dependência, como morfina, meperidina (Demerol® ouDolantina®), fentanila, etc. são prescritos na mesma notificação A, de cor amarela."

Como ressaltado no início, o aumento da prescrição não é um fenômeno restrito aos estimulantes. A prescrição de antidepressivos cresceu ao ponto de o medicamento se tornar o 3o. mais prescrito nos EUA. Entre o período de 1988-1994 e 2005-2008 o crescimento foi de 400%, de modo que atualmente 1 em cada 10 cidadãos americanos com mais de 12 anos estão em uso de algum antidepressivo. O que mais chama atenção sobre esses dados é que o aumento da prescrição é decorrente principalmente da prescrição de antidepressivos por não-psiquiatras! E mais: em cerca de 70% das prescrições, nenhum diagnóstico psiquiátrico foi registrado. A cereja do bolo: menos de 1/3 daqueles que estão tomando um antidepressivo e menos de 50% daqueles tomando vários antidepressivos entre 2005-2008 visitaram um profissional de saúde mental no último ano. Entre os que foram a um profissional de saúde mental, os homens respondiam por uma proporção significativamente maior. Ou seja, mais cuidado ao culpar os psiquiatras pelo "boom!" nas prescrições de psicotrópicos, especialmente quando não indicados.

À guisa de conclusão, é importante colocar esses dados de aumento de prescrição em um contexto de aumento de prescrição de "neurodrogas" em geral. Ou seja, antidepressivos e estimulantes são mais prescritos atualmente (ainda bem, diriam muitos médicos, pacientes e a indústria, obviamente), mas também são mais prescritos os antiepilépticos, os medicamentos para Alzheimer, Parkinson e analgésicos. Medicamentos de outras classes também têm sido mais prescritos, como os antihipertensivos e a melatonina. Um interessante comparativo e crítica do aumento na prescrição de antidepressivos pode ser lido numa postagem recente do blog Neuroskeptic. Por que de tanto alarde com os antidepressivos e os estimulantes? Por que de tanto alvoroço com o aviso sobre aumento de "suicidalidade" com os antidepressivos (o "Black Box Warning" do FDA), se o mesmo aviso também se encontra nos antiepilépticos? Não seria tudo isso um baita preconceito contra os transtornos mentais e a psiquiatria?

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